sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

CENAS DA VIDA REAL

A TI MASDÉ

Caminhando pela vereda estreita, com destino à casa da Ti Masdé, a “menina Aurora” ia meditando nos últimos acontecimentos, com especial incidência naquele que mais a tinha afligido – o acidente com a camioneta de passageiros.
Estava em casa, muito descansada a tratar dos seus afazeres, quando, de repente, começou a ouvir gritos e batidas na porta de casa: - Menina Aurora, menina Aurora! Venha depressa! Uma camioneta roçou pela parede do Amaro, e há muitas pessoas feridas.
Não pensou duas vezes. Largou imediatamente o que tinha entre mãos, dirigindo-se apressadamente para o local do acidente, que distava muito pouco de sua casa.
Ali chegada, a cena que viu assustou-a e petrificou-a por momentos: inúmeras pessoas escorrendo sangue dos braços, entre elas várias crianças, algumas quase desmaiadas, todas chorando ou gritando, uma confusão enorme.
Um dos presentes em poucas palavras contou-lhe o que sucedera: “Uma camioneta que regressava de uma peregrinação a Fátima, ao cruzar-se com um automóvel, desviara-se do centro da estrada, não muito larga, encostando-se demasiado à parede de uma casa. Como estava muito calor, (era o mês de Agosto) as janelas iam todas abertas, e as pessoas com os braços pousados nos caixilhos. Quando a camioneta roçou pela parede, os braços foram raspados com toda a violência, causando ferimentos enormes em todos os que iam sentados do lado direito da camioneta. Só escaparam ilesos os que viajavam no lado esquerdo da camioneta, assim como o motorista que, naquela momento levava as mãos à cabeça, em desespero, com um ar completamente descontrolado.
A “menina Aurora” fez um esforço para reagir e dirigiu-se rapidamente a casa. Agarrou um lençol lavado que aguardava ser passado a ferro, e rasgou-o em várias tiras. De seguida segurou a sua saqueta de primeiros socorros, e, em passos apressados, dirigiu-se de novo ao local do acidente.
Depois de recomendar a um dos habitantes locais que haviam acorrido ao local que fosse imediatamente chamar o médico, com gestos precisos e seguros começou a limpar e desinfectar feridas, envolvendo os braços feridos com as tiras do lençol. Tentou dar preferência às crianças, mas as pessoas atropelavam-se com o intuito de receberem tratamento o mais depressa possível.
Já ela tinha atendido um grande número de pessoas quando apareceram o médico e a enfermeira, que se encontravam no consultório médico. Ambos ajudaram a tratar das pessoas que ainda não haviam recebido tratamento. Depois de todos terem sido socorridos foi oferecida água a todos, que, aos poucos, se foram acalmando.
Foi então que o médico pronunciou aquelas palavras que foram a melhor recompensa para a “menina Aurora”:
- Todos têm que agradecer a esta senhora, porque se ela não os tivesse atendido tão prontamente, provavelmente alguns de vocês iriam ter graves problemas de infecções nos vossos braços.

Agora, a caminho da casa da Ti Masdé, a “menina Aurora” esboçou um leve sorriso ao recordar as palavras do médico, e pensando: "Ora, qualquer um teria feito o mesmo; eu apenas reagi mais depressa".
Apressou o passo, pois não queria ser surpreendida pela noite no seu regresso a casa, e para tratar da Ti Masdé ainda demorava algum tempo.
Ao fim da vereda deparou-se com a choupana onde se encontrava a mulher conhecida por “Ti Masdé”, cujo nome era Maria José. Viúva há muitos anos, com os dois filhos emigrados em França e dos quais há muito tempo deixara de saber notícias, vivia da caridade alheia, mais concretamente da caridade de duas senhoras – a “menina Aurora”, e uma sua amiga, a Dona Flor.
Esta, todos os dias mandava uma criada ir levar o almoço à Ti Masdé; a “menina Aurora” ia todas as tardes levar-lhe o jantar, e tratar da sua higiene, já que a pobre mulher se encontrava acamada.
O casebre tinha uma divisão com chão de terra batida, e ao fundo um pequeno quarto onde agora não era possível dormir porque sofrera uma enorme rachadela na parede, separando-o da outra divisão, e ameaçando desmoronar-se a qualquer momento. Na “sala” havia uma lareira, à esquerda, e a seguir, encostada à parede, uma mesa com um ou dois pratos, talheres e canecas em cima; e à direita, ao fundo, um colchão no chão onde se encontrava a Ti Masdé.
Todos os dias a “menina Aurora” cumpria o mesmo ritual:
_ Colocava o jantar em cima da mesa e acendia a lareira. Depois lavava o melhor que podia aquele corpo doente, mudava-lhe a roupa da cama, que levava da sua casa, e vestia-lhe uma camisa lavada. Ajudava-a a sentar-se encostada ao travesseiro, e punha-lhe o prato da comida em frente. Aguardava que ela comesse, recolhia a roupa suja e a louça usada, e despedia-se com um “até amanhã, se Deus quiser”.
Esta senhora, de cerca de cinquenta anos, casada e Mãe de cinco filhos, com a sua casa para tratar e governar, realizou esta tarefa por largos meses, desde que a Ti Masdé caíra à cama, até ao final dos seus dias. Enquanto ela, com maior ou menor dificuldade, se foi movimentando, ia todos os dias almoçar a casa da Dona Florinda, e jantar a casa da “menina Aurora”, para a qual trabalhara quando era nova e tinha saúde para o fazer. Mas, com o avançar da idade e a falta de saúde, vivia dependente dessas duas senhoras.
Não pretendendo menosprezar o bem que praticou a Dona Flor, mandando a criada levar o almoço à Ti Masdé, não posso deixar de realçar a acção da “menina Aurora”, duma bondade extrema, com um coração gigantesco, praticando, ao longo da sua vida, acções que muitas outras pessoas se recusariam a executar.
Numa das férias que sempre lá passei enquanto estudante um dia pedi-lhe para a acompanhar a casa da Ti Masdé.
Entrei naquela “sala” escura, com as paredes negras do fumo da lareira, e um insuportável, irrespirável cheiro, que me deu volta ao estômago e me obrigou a ir para o ar livre passados poucos momentos. Sentei-me no muro de pedras soltas da vereda, e aguardei. Passado algum tempo, que aproveitei para respirar fundo e retirar dos pulmões aquele ar empestado que respirara dentro do casebre, apareceu a “menina Aurora”.
Não me contive sem lhe dizer:
- Não sei como é que a Mamã aguenta fazer isto todos os dias!
Sim, a “menina Aurora” era a minha Mãe, uma Mulher extraordinária, a quem presto esta singela homenagem, do mesmo modo que a homenageavam todos os que a tratavam, carinhosa e respeitosamente, por “menina”, mesmo depois de ela ter completado os oitenta anos.
Ocorreu-me escrevê-la e publicá-la agora, que estamos a duas semanas de homenagear a que foi Mãe de Jesus.
 
 E, como só voltarei no próximo ano, dia 14 de Janeiro de 2013, desejo a todos um feliz Natal e um Ano Novo radioso.