segunda-feira, 19 de setembro de 2016

FÉRIAS/SENTIDO INVERSO

… No dia seguinte eu não trabalhei à noite e fiquei na sala. Acomodei-me no sofá e liguei a televisão.
 A minha amiga veio sentar-se junto de mim e começou a falar:

SENTIDO INVERSO
III e ÚLTIMA PARTE

- Sabes o que significa o que surpreendeste ontem?
- Calculo que sim… Ou haverá outra explicação diferente daquilo que pensei?
- Não, o que pensaste está correcto. Eu sou lésbica, e não me envergonho…
- E porque haverias de te envergonhar? Se há algum motivo para te envergonhares é o não teres sido franca comigo, quando pensámos em alugar o apartamento e passarmos a viver juntas.
- Se soubesses que eu era lésbica não terias vindo viver comigo?
- Provavelmente isso não me faria mudar de ideias, viria viver contigo, sim, mas não teria feito figura de parva…
- Mas tu não fizeste figura de parva coisa nenhuma. Quando é que tal aconteceu?
- Olha, todas as vezes que recebeste amigas no teu quarto e eu não desconfiei de nada. Achas pouco?
Nesta altura ela agarrou a minha mão, meigamente, acariciando-a com um ar perfeitamente inocente.
Eu não vi nesse gesto qualquer segunda intenção, por isso não retirei a mão.  
A minha amiga disse:
- Perdoa-me. Acredita que não queria magoar-te. Eu gosto muito, muito, de ti. Há muito tempo, desde o primeiro ano da Faculdade, que eu sentia uma atracção enorme por ti. Mas nunca tive coragem para to dizer. O facto de sermos tão amigas ainda me intimidava mais.
À medida que falava ia se aproximando, e em breve estava a dar-me pequenos beijos no pescoço, entrecortado de curtas frases - “ Deixa-me fazer-te feliz”…
Senti um frémito de prazer percorrer-me o corpo. Fechei os olhos e imaginei-me nos braços dum príncipe encantado, acariciando-me ternamente.   
Perante a minha passividade, ela avançou a outra mão e começou a desabotoar-me os botões da blusa.


Abri repentinamente os olhos e “vi” que ao meu lado estava UMA princesa, não UM príncipe.
Com suavidade mas também com firmeza, retirei a mão que tinha sobre o meu peito e afastei-me dela. Segurando-a pelos ombros, olhos nos olhos, disse-lhe, claramente:
- Eu gosto muito de ti, tu sabes. Adoro-te! Mas entre nós nunca poderá existir nada para além de uma grande mas pura amizade.
- Pois aí é que está a questão. Tu vês-me como uma irmã, e qualquer envolvimento entre nós ia ter, para ti, o cariz de incesto.
Mas tu não imaginas como pode ser doce e ao mesmo tempo arrebatador o Amor entre mulheres. Aquela minha amiga que avistaste ontem é fantástica. Deixa-me apresentar-ta. Tenho a certeza que mudarás de ideias. Eu senti, ainda há pouco, que estavas a ter prazer…
- Sim, é verdade que por breves momentos fiquei excitada. Mas sabes porquê? Porque me imaginei nos braços de um homem.
Não, minha amiga, não quero que me apresentes ninguém. Eu sei que, definitivamente, gosto de homens, e serei incapaz de ter qualquer ligação íntima com uma mulher.
A minha amiga notou o tom firme em que falei. Não insistiu. Continuámos, e ainda somos, excelentes amigas.
Este incidente não me afectou minimamente. Talvez fizesse com que me viesse à memória, com maior frequência, o que aconteceu quando andava na escola.
Será que, se aquela experiência se tivesse consumado, eu hoje seria como a minha amiga? Gostaria só de mulheres, seria lésbica? Para esta pergunta não encontro resposta.
Eu e a minha colega ainda partilhámos o apartamento por dois ou três anos. Depois ela foi viver com outra amiga, com quem estabeleceu uma relação estável, que dura até hoje.
A nossa amizade não foi afectada com a separação. Continuamos grandes amigas. Respeito a sua opção de vida tal como ela respeita a minha.
Eu continuei com os estudos, acabei o curso, e fiquei a estagiar no escritório do meu “patrão”. Namorei muito, mas sem compromissos sérios.
Há dois anos, quando festejei os meus 35 anos, conheci alguém especial. Muito especial. Houve química entre nós. Iniciámos uma relação de Amor sem sobressaltos, com os seus momentos de paixão intensa, e sentimos que “fomos feitos um para o outro”. Estamos ambos convencidos de que acabaremos os nossos dias juntos.
Entretanto, alguns meses depois de o conhecer, uma noite sonhei que eu era homem. Nesse sonho a minha Mãe aparecia olhando-me com enlevo e orgulho, e de repente notei que estávamos vestidos de cerimónia: a minha Mãe com um vestido longo, e eu com um belo smoking. Ela segurava o meu braço, caminhando lentamente ao meu lado. Ao longe vislumbrei um vulto, que não identifiquei, de alguém usando um vestido de noiva, o que me causou um grande sobressalto. Era o meu casamento!
Acordei subitamente, impressionada com um sonho tão disparatado.
Durante o dia várias vezes o mesmo me veio à ideia. E pensava:
- Como será ser homem? Os homens serão assim tão diferentes das mulheres? Deveria eu ter nascido homem? Nesse caso eu gostaria, naturalmente, de mulheres…
Nessa mesma noite tomei uma decisão.
- Quero experimentar a sensação de ser homem!
Inscrevi-me numa rede social com um perfil masculino.
Como domino razoavelmente bem a técnica da imagem em computador “construí” uma foto dum homem jovem, muito charmoso, que causa um verdadeiro delírio especialmente entre as teenagers.


Todas as noites abro a minha página e respondo às inúmeras mensagens das minhas admiradoras, a cada dia aprimorando as minhas qualidades de figura masculina, contando histórias fantásticas que as põem ao rubro.
Sou um verdadeiro herói. Bem de vida, com uma profissão liberal, sem compromissos a não ser com o meu trabalho, uns 28 anos muito saudáveis e frequentes idas ao ginásio.
Trato todas com o mesmo carinho, sem preferência por nenhuma, de modo a não causar ciúmes. Um gentleman muito diplomático.
Mas o mais estranho é que faço isto com prazer, e sinto-me cada vez mais presa ao personagem que todas as noites encarno.
O facto de a maioria, se não a totalidade dos comentários e pedidos de amizade que recebo serem de mulheres, talvez explique o prazer que me dá representar o papel de homem.
De vez em quando faço auto-análise, como sempre fiz, não querendo nunca recorrer a psicólogos. E muitas vezes me pergunto se, no fundo, eu não sentirei um certo desprezo ou desgosto pelo facto de ser mulher, e se não faço isto como uma espécie de vingança. Porque, no fundo, o que estou a fazer, é enganar mulheres, jovens, na sua maioria – pelo menos assim se apresentam – ainda que apenas no campo virtual.
Quando estas dúvidas me assaltam fico muito desgostosa comigo mesma, e durante uns dias não abro a minha página. Mas… não resisto muito tempo, e acabo por voltar lá e começar tudo de novo. Nessa altura já as minhas admiradoras me encheram a página com lamúrias…

Entretanto… está nos meus planos constituir família com o meu actual namorado. Mas, antes, tenho que lhe contar este meu segredo. Se ele o entender… passaremos a viver juntos, teremos os nossos filhos, e seremos felizes para sempre. E abandonarei a página social, quanto mais não seja por falta de tempo, pois tenciono dedicar-me à família por completo, embora sem descurar a profissão…
O meu maior desejo é que a minha prole, em número ainda não definido, seja constituída apenas por meninas. Vou vingar-me cobrindo-as de laços, lacinhos e laçarotes, flores e passarinhos, e corações, atravessados ou não por setas! Sem esquecer os folhinhos e os cabelos pela cintura.

Hoje eu pergunto-me: eu seria uma pessoa diferente, mais estável, mais segura, com menos dúvidas que, constantemente invadem o meu espírito, se a minha Mãe não tivesse tentado forçar o meu destino, querendo dar-lhe um sentido inverso?